A falta de inserção da criança e do adolescente como prioridades absolutas no planejamento de ações do poder público ainda é o maior entrave à garantia de direitos previstos na Lei 8069/90 (ECA) e na própria CF/1988. A avaliação é da promotora de Justiça Alexandra Beurlen, titular da Promotoria de Justiça Coletiva da Infância e da Juventude e representante do Ministério Público de Alagoas no Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Na entrevista a seguir, veiculada na edição de junho do Jornal do Centro de Formação e Aperfeiçoamento Funcional do MP, Alexandra fala um pouco de questões humanas, políticas e jurídicas pertinentes a sua atuação na Infância e Juventude.

Cefaf em ação – Desde que entrou em vigor, há 16 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) vem sendo encarado, até mesmo no meio jurídico, como uma legislação que “alivia” os atos infracionais cometidos por adolescentes. A senhora acha que há excesso de proteção?

Alexandra Beurlen – Não protege de forma alguma. Existe procedimento e punição. O ECA é uma legislação avançada porque se preocupa com prevenção, quando estipula todos os deveres do Estado e da sociedade para com a criança e o adolescente, e ainda determina as medidas sócio-educativas que devem ser aplicadas nos casos de infração. Os Tribunais inclusive reconhecem o caráter retributivo e punitivo das medidas sócio-educativas, que são aplicadas aos infratores entre 12 anos de idade completos até aos 18 anos incompletos, podendo ser estendidas até 21 anos (art. 2º – ECA). Vale ressaltar que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), as pessoas só atingem seu pleno amadurecimento psicológico aos 25 anos. Portanto, não há que se falar em excesso.

Cefaf em ação – Existe uma gradação para aplicação das medidas sócio-educativas (art.112/ECA: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional).O internamento seria o tipo mais drástico de reeducação?

Alexandra Beurlen – O ECA estabelece que a medida sócio-educativa de internação e a internação provisória devem ser medidas de exceção. O próprio STF entende que somente quando nenhuma outra medida for adequada e nas circunstâncias taxativas do artigo 122 (ECA) é que elas podem ser aplicadas.

Cefaf em ação – Na prática, isso vem sendo respeitado?

Alexandra Beurlen – Não. O que se vê são adolescentes sendo apreendidos até mesmo no seu primeiro furto.

Cefaf em ação – Com relação ao direito de ampla defesa, tem havido o devido respeito?

Alexandra Beurlen – Em muitos casos não. Por exemplo, a medida de internação como medida sócio-educativa em regressão da medida anteriormente aplicada tem que assegurar o direito de ampla defesa e às vezes tem sido aplicada sem a oitiva do adolescente e seu defensor, o que contraria a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Cefaf em ação – Há adolescentes que cometem atos infracionais sob forte efeito de drogas. Nesses casos, o Estado não teria que garantir o tratamento antes de qualquer medida?

Alexandra Beurlen – A jurisprudência assegura que é obrigação do município fornecer o tratamento adequado. No estado de Alagoas, isso não acontece em nenhum município. Se não há local, o tratamento deve ser assegurado, nem que seja em outro município ou em outro estado.

Cefaf em ação – Existe uma decisão taxativa com relação à proibição da revista íntima nos locais de execução das medidas sócio-educativas?

Alexandra Beürlen – Em Alagoas, o Conselho Estadual de Justiça e Segurança decidiu há dois anos que a revista íntima deveria ser proibida. Atualmente, em função de rebeliões, o Conselho está novamente discutindo o tema.

Cefaf em ação – Na sua opinião, essa revista íntima deveria ser proibida?

Alexandra Beürlen – Particularmente, acredito que a regra deve ser proibitiva em razão do constrangimento causado a quem é submetido à revista. Isso porque o constrangimento leva à evasão das visitas, o que conseqüentemente acarreta prejuízo ao processo de reeducação do adolescente.

Cefaf em ação – Em que casos a revista deveria ser permitida?

¬ Alexandra Beürlen – Só em casos excepcionais, após investigação que fundamentasse a necessidade, ouvido o Ministério Público, e com autorização judicial (Execução Penal ou Execução de Medida Sócio Educativa).

Cefaf em ação – A visita íntima dos companheiros e companheiras dos adolescentes em regime de internamento deve ser permitida?

Alexandra Beurlen – A Organização Mundial de Saúde considera que, a partir dos 15 anos, a gravidez não é mais de risco. É fato que a maioria dos meninos e meninas que cumprem medidas sócio-educativas já têm vida sexual ativa. Trata-se do direito à intimidade, ao vínculo afetivo. Por isso, em 2004, o Ministério Público alagoano solicitou ao Juízo da Execução de Medida Sócio-Educativa em Meio Fechado a liberação da visita íntima. No início de junho do ano em curso, o pedido foi atendido e a visita está liberada.

Cefaf em ação – Foram estabelecidas condições?

Alexandra Beurlen – Sim, relacionamento afetivo estável, ambos serem maiores de 15 anos e com a autorização dos pais. Além disso, é preciso que o Estado assegure o devido planejamento familiar, incluindo palestras educativas, distribuição de contraceptivos e realização de exames médicos.

Cefaf em ação – O que falta para que as medidas sócio-educativas prevista no ECA tenham sua aplicação corretamente assegurada?

Alexandra Beurlen – O Estado tem que assumir a criança e o adolescente como prioridade absoluta, como determinam o art. 227, caput, da CF/88, e o art. 4º do ECA. Se isso acontecesse, certamente, sequer seria necessária a adoção de medidas sócio-educativas.